Em 1971 o experimento da prisão de Stanford colocou pessoas normais simulando presos e carcereiros e o desfecho foi nada menos que assustador. Com base neste estudo o prof. Zimbardo elaborou a teoria do “efeito Lúcifer”, usando este fenômeno para explicar ações de militares em situações extremas. Por esta perspectiva as pessoas não necessariamente seriam “ruins”, malignas, ou o demo (sinônimos encontrados na rede para Negan), mas agiriam conforme o contexto em que estão inseridas, amplificando ações condenáveis. O universo de The Walking Dead propicia determinados comportamentos para que se possa continuar sobrevivendo?
Partindo da premissa que a sociedade legitima o contexto, a tal sociedade em que Rick se encontra, e que aliás ajuda a moldar, está sustentada sobre o caos, sobre os mortos e nela caminham “os mais fortes”. Durante uma hora de tortura, no primeiro episódio da 7º temporada de The Walking Dead, vimos um ser humano divertindo-se com a situação em que um grupo se destruía. Todos de joelhos, impotentes diante de uma situação que não teria como ser revertida.
Alguém iria morrer, foi a regra anunciada para demonstrar a superioridade de uns sobre outros e para “ensinar” sobre como deveriam se comportar. Mais regras foram postas ao longo do martírio. Um se foi e o impacto já parecia o suficiente, mas do lado dos expectadores ficava a indagação: seis meses de espera para um personagem secundário morrer (sim, muita gente pensou isso, não neguem)? As cenas seguem e ainda que todos que assistiam, como Rick e seu grupo, passivos perante a realidade imposta por Negan, não desejem o pior, queiram que seus favoritos estejam a salvo, um bichinho ficava nos fazendo a pergunta: algo mais vai acontecer, né? Ninguém paga para ir numa montanha russa se não for para sentir adrenalina e ninguém se dispõe a assistir uma série, que pretende ser de terror, para não sentir o terror. Mas esse algo mais não se resume ao destino de Glenn, foi ensinado por Negan que há violências muito piores que pauladas sucessivas na cabeça de alguém.
Em outro experimento psicológico, desenvolvido por Milgran, a obediência foi posta à prova. Fazendo paralelos com o holocausto, o estudo buscava entender como as pessoas, até aquelas que aparentemente eram ajustadas às normas morais, cometiam crimes hediondos em determinadas situações. A hipótese era de que oficiais nazistas talvez não fossem os responsáveis pelos seus atos contra judeus na Segunda Guerra, cumprindo ordens das quais não conseguiam recusar, pois conflitavam com a autoridade presente. Nas simulações, um cientista solicitava a pessoas comuns que aplicassem choques em um indivíduo, mesmo que este gritasse de dor. Ainda que estivesse “sofrendo” por dar o choque no ator (era uma farsa) a maioria seguia “ferindo” o sujeito. Negan era a autoridade máxima no embate do último domingo, ele segue as ordens para continuar no poder, o que ele mandar deve ser cumprido, pois diz respeito a algo maior, à cultura que está se estabelecendo. E estava “adestrando” seus novos empregados para que a roda do sistema pudesse girar.
Algo da tortura ultrapassou os limites da televisão e fomos confrontados com uma cena semelhante à dos quadrinhos. Não queríamos mais ir tão longe, mas fomos e não dava para pedir para parar. Ninguém foi obrigado a assistir e alguns se incomodaram bastante. Se antes suportávamos, transbordou a cota de aceitação e aquela dor inferida por Negan ao grupo de Rick alcançou os expectadores da ficção. O ex-policial não foi fisicamente agredido, mas pouco a pouco morria o líder, sobrava um servo, assassinado por alguém totalmente seguro de seu papel, de seu espaço e das consequências de seus atos. Não era Negan que tinha algo a perder, ainda que deixasse claro ser o dono de tudo. O ápice foi ver Rick pesar entre cortar o braço de Carl, oferecer seu próprio no lugar e a execução de todos que sobraram eminente, caso não obedecesse. Ok, “já entendemos“, disse Michonne. Mas não é o suficiente achar que um cachorro não vai mais te morder se um dia ficar com fome, é preciso ter certeza. Sob esta lógica e também com elevado grau de diversão, Negan iniciou a contagem regressiva.
Num momento anterior Daryl reagiu, tardio, com um delay que irritou muita gente, causando a segunda morte da ceifadora Lucile, mas até mesmo esta reação letárgica pode ser explicada e é um reflexo do que encontramos na realidade. Existem duas formas básicas de enfrentamento ao estresse: Luta e fuga. Não dava para fugir, muito menos lutar, restava paralisar e esperar o menos pior. E um olho saltado de Glenn ficará marcado na memória dos que assistiram (lá e cá), especialmente para Maggie.
Se nas primeiras temporadas vimos uma sociedade humana destruída por uma pandemia zumbi e tentando se ajustar, mas mantendo-se num esforço para fazer o certo, o foco ainda era nas pessoas, no micro, vemos agora as pessoas transformadas por uma sociedade (Des) humana, macro, ela é feia, embora não tão diferente da nossa atual. Novos padrões de comportamento são impostos pela necessidade de proteger a si e os seus, questões ambíguas se desenrolam.
Na vida só há duas coisas de que não podemos escapar: “morte e impostos”. Os mortos burlam o descanso final no mundo de The Walking Dead, corpos podres insistindo em caminhar, mas com um tiro na cabeça tudo termina. E os impostos voltam a ser recolhidos em nome de um cobrador terrível, uma materialização em carne, osso e bastão de basebol coberto por arame farpado do Estado atual, com quem não conseguimos discutir, apenas obedecemos e pagamos o preço imposto, mesmo se ele estiver custando vidas. Um tiro na cabeça não é suficiente para acabar com esse mal, outro o substituiria. Quem sabe Rick, “não hoje, não amanhã, mas um dia“.