A Galera Record, editora que publica os livros de The Walking Dead no Brasil, disponibilizou em caráter promocional o primeiro capítulo do quinto livro da franquia, “The Walking Dead: Declínio”.
O livro, de autoria de Robert Kirkman e Jay Bonansinga, foi lançado no dia 14 de Outubro de 2014 nos Estados Unidos, com previsão de lançamento em Abril de 2015 no Brasil e 336 páginas.
Confira a capa da versão nacional, a sinopse e leia o primeiro capítulo abaixo:
Sinopse
Renascida das cinzas de seu passado sombrio, Woodbury se torna um oásis de tranquilidade em meio à praga dos errantes. Mas, após o chocante fim do ex-tirano Phillip Blake, o Governador, Lilly Caul e seu grupo de sobreviventes deverão superar seu passado traumático. E, como sabemos, os mortos-vivos são o menor dos problemas para os habitantes desse inóspito universo.
Capítulo 1
Naquela manhã silenciosa, dois problemas diferentes e preocupantes estão logo abaixo da superfície daquela cidade que é uma ruína incinerada — as duas questões, pelo menos a princípio, passam completamente despercebidas pelos residentes.
O rufar de martelos e o arranhar das serras preenchem o ar. Vozes se erguem ao vento em chamados e respostas ocupados. Os odores familiares de fumaça de madeira, piche e matéria orgânica turvam as brisas mornas. Uma sensação de renovação — talvez até de esperança — pulsa sob a superfície de toda a atividade. O calor opressivo do verão, ainda um ou dois meses distante, não conseguiu murchar as rosas cherokee selvagens que crescem profusamente ao longo dos trilhos abandonados do trem. O céu assume um brilho de alta definição, de um azul como o ovo de um pisco-de-peito-ruivo que o céu por esses lados costuma adquirir nas últimas passageiras semanas da primavera.
Incentivados pela tumultuosa troca de regime, assim como pela possibilidade de um novo modo de vida democrático em meio às ruí-
nas da praga, o povo de Woodbury, Geórgia — que um dia foi um burgo junto à ferrovia, 50 quilômetros ao sul de Atlanta, só recentemente reduzido a prédios carbonizados e estradas desgastadas, marcadas e cobertas de lixo —, se reconstituiu como cadeias de DNA, formando um organismo mais forte e saudável. Lilly Caul é um grande motivo para esse renascimento. A jovem esguia, bonita e amargurada pela batalha, com cabelo castanho-avermelhado e rosto em formato de coração se tornou a líder relutante da cidade.
Neste momento, na verdade, a voz dela pode ser ouvida de qualquer quarteirão, sendo carregada pelo vento com autoridade, flutuando
para o alto de carvalhos e álamos que ladeiam o passeio oeste da pista de corrida. De cada janela aberta, cada beco, cada curva da
arena, ela pode ser ouvida vendendo o pequeno assentamento com o entusiasmo de um agente imobiliário da Flórida anunciando propriedades em frente à praia.
— Neste instante, a zona de segurança está reduzida, admito — comenta Lilly candidamente para algum ouvinte não identificado. — Mas estamos planejando expandir aquela parede ali mais um quarteirão para o norte, e esta aqui talvez mais dois ou três ao sul, então, no fim, vamos acabar com uma cidade dentro de outra, um lugar seguro para crianças, o qual, um dia, se tudo correr bem, será totalmente controlado e totalmente autossustentável.
Conforme o som alegre do monólogo de Lilly ecoa e penetra nas reentrâncias e fendas daquele estádio de corrida — lugar onde um dia
a loucura reinou na forma de lutas sangrentas mortais —, a figura escura presa sob um bueiro vira o rosto incinerado na direção da voz com a brusquidão mecânica de uma antena de satélite girando na direção de um sinal do espaço.
O cadáver queimado e reanimado, que um dia foi um fazendeiro alto, com músculos definidos e uma cabeleira espessa cor de palha, tropeçou para dentro do bueiro quebrado durante o caos e o incêndio que tomaram a cidade havia pouco tempo, e vem passando despercebido havia praticamente uma semana, gemendo naquela cápsula de escuridão fétida e sem ar. Centopeias, besouros e tatuzinhos rastejam descontroladamente pelo rosto sem vida e pálido dele e descem pela sua calça jeans surrada e desbotada, cujo tecido está tão velho e gasto que mal se distingue da pele morta da coisa.
Esse errante desgarrado, que já foi um membro cativo dos gladiadores não humanos que animavam a arena, se provará o primeiro de
dois acontecimentos muito preocupantes que passam completamente despercebidos por todos os residentes da cidade, incluindo Lilly, cuja voz se ergue a cada passo em direção à pista de corrida, o arrastar de outros passos audível sob os dela.
— Agora, vocês podem estar se perguntando: “Estou vendo coisas ou um disco voador gigante aterrissou no meio da cidade quando ninguém estava olhando?” O que estão vendo é a Pista de Corrida dos Veteranos de Woodbury. Acho que a chamariam de um resquício de tempos mais felizes, quando as pessoas não queriam nada numa sexta-feira à noite além de um balde de frango frito e uma pista cheia de homens em stock cars ultrapassando uns aos outros e poluindo a atmosfera. Ainda estamos pensando no que fazer com ela… mas achamos que daria um ótimo jardim público.
Dentro da clausura fétida da galeria de esgoto, o fazendeiro morto baba diante da perspectiva de tecido vivo se aproximando. O maxilar dele começa a se abrir e a ranger, fazendo um ruído como o de papel sendo amassado, conforme a criatura vagueia em direção à parede, estendendo os braços às cegas na direção da luz do dia que se infiltra pelo bueiro. Pelas barras estreitas de ferro da tampa, a criatura consegue ver as sombras de sete humanos vivos se aproximando.
Mas a coisa acidentalmente prende o pé direito em um buraco na terra despedaçada da construção.
Errantes não têm habilidades para escalada, nenhum propósito a não ser devorar, nenhuma noção a não ser a da fome, mas, naquele momento, o obstáculo imprevisto é suficiente para que a coisa quase que acidentalmente se erga até a tampa quebrada pela qual havia caído. E, quando seus olhos de botão branco alcançam a borda do buraco, a criatura fixa o olhar feroz na figura mais próxima: uma garotinha vestindo trapos que anda ao lado de Lilly com uma expressão séria no rosto sujo de poeira.
Por um momento, o errante dentro do esgoto se encolhe como uma mola, emitindo um grunhido baixo que mais parece um motor, e
seus músculos mortos se contraem devido a sinais inatos enviados por um sistema nervoso reanimado. A boca escura e sem lábios da criatura se descola dos dentes verde-musgo, os olhos são como diodos leitosos absorvendo a presa.
***
— Vocês vão ouvir boatos sobre isso mais cedo ou mais tarde — confidencia Lilly aos clientes malnutridos enquanto passa a centímetros da tampa do bueiro.
O grupo do tour é composto por apenas uma família, os Dupree, que consiste em um pai macilento de cerca de 40 anos que atende pelo
nome de Calvin, sua esquálida esposa, Meredith, e seus três trapinhos: Tommy, Bethany e Lucas, de respectivamente 12, 9 e 5 anos. O clã Dupree surgiu nos limites da cidade de Woodbury na noite anterior, em uma caminhonete Ford LTD caindo aos pedaços, quase mortos por inanição, praticamente psicóticos de fome. Lilly os acolheu. Woodbury precisa de gente, novos residentes, novatos que possam ajudar a cidade a se reconstruir e fazer parte do trabalho pesado de montar uma comunidade.
— Melhor que ouçam de nós — diz Lilly para eles, parando e vestindo o moletom da Georgia Tech e uma calça jeans rasgada, com as mãos no cinto de munições Sam Browne. Ainda com 30 e poucos anos, mas com o rosto de uma alma muito mais velha, Lilly prendeu o cabelo castanho-avermelhado em um rabo de cavalo apertado, seus olhos castanhos brilhavam com uma faísca no centro das pupilas, em parte inteligência e em parte a expressão ausente de um guerreiro experiente. Ela olha por cima do ombro para uma sétima figura atrás de si. — Quer contar a eles sobre o Governador, Bob?
— Vá em frente — encoraja o homem mais velho com um sorriso cansado pela praga no rosto marcado pelo tempo com a pele grossa. Com o cabelo escuro penteado com gel para trás sob a testa enrugada, o cinto de munição acima da camisa de cambraia manchada de suor, Bob Stookey tem 1,80 metro de altura, mas curva o corpo com a fadiga eterna de um bêbado recuperado, que é o que ele é. — Você está mandando bem, menina Lilly.
— Tudo bem… Então… durante praticamente um ano — começa ela enquanto encara os Dupree, um de cada vez, enfatizando a importância do que está prestes a dizer — este lugar, Woodbury, esteve sob o domínio de um homem muito perigoso chamado Philip Blake. Que era chamado de Governador. — Ela solta um suspiro ínfimo, que é meio um risinho, meio um suspiro de nojo. — Eu sei… não deixamos de notar a ironia. — Ela inspira. — Enfim… ele era um completo sociopata. Paranoico. Delirante. Mas fazia as coisas. Odeio admitir, mas… ele pareceu, para a maioria de nós, pelo menos, durante um tempo, um mal necessário.
— Desculpe… hã… Lilly, é isso? — Calvin Dupree deu um passo adiante. Ele é um homem pequeno, de pele clara, com os músculos
duros e demarcados de um trabalhador braçal. Está vestindo um casaco imundo, o qual parece ter sido usado como avental de açougueiro. Seus olhos estão sóbrios, acolhedores e abertos, apesar do jeito reticente e do trauma permanente de ter ficado no mundo selvagem sabe Deus por quanto tempo. — Não tenho certeza do que isso tem a ver com a gente. — Ele olha para a esposa. — Quero dizer… agradecemos a hospitalidade e tudo, mas aonde quer chegar com isso?
A esposa, Meredith, encara a calçada, mordendo o lábio. É uma mulher pequenininha e calada que usa um vestido de alça aos farrapos
e que não disse mais que três palavras — a não ser por “hum” ou “aham” — desde que chegaram. Na noite anterior, eles foram alimentados, receberam primeiros socorros de Bob e foram deixados para descansar. Agora, a mulher se distrai enquanto espera Calvin exercer seu dever patriarcal. Atrás dela, as crianças olham com expectativa. Parecem em choque, confusas, esquivas. A menininha, Bethany, está a apenas alguns centímetros da tampa do bueiro quebrada, chupando o dedo com uma boneca surrada na dobra do bracinho, completamente alheia à sombra que se move dentro do buraco.
Durante dias, o fedor emanando do esgoto — o odor peculiar de carne rançosa de um Mordedor — foi confundido com o fedor de esgoto
velho, e o ruído de grunhidos baixos foi identificado erroneamente como a reverberação de um gerador. Agora o cadáver reanimado consegue espremer a mão feito garra por uma abertura na tampa quebrada, as unhas podres estendendo-se na direção da bainha do vestido da garota.
— Entendo a confusão — diz Lilly a Calvin, fixando o olhar nele.
— Nunca nos viu. Mas achei que… sabe. Toda a verdade. O Governador usava esta arena para… coisas ruins. Lutas de gladiadores contra Mordedores. Coisas feias em nome do entretenimento. Algumas pessoas por aqui ainda estão meio assustadas por causa daquilo tudo. Mas tomamos o lugar de volta e estamos oferecendo um santuário, um lugar seguro para viver. Gostaríamos de convidar vocês para ficarem aqui. Permanentemente.
Calvin e Meredith Dupree trocam mais um olhar e a mulher engole em seco, olhando para o chão. Calvin está com uma expressão estranha — quase um desejo —, e se vira para começar a dizer:
— É uma oferta generosa, Lilly, mas preciso ser sincero…
Subitamente, ele é interrompido pelo rangido enferrujado da tampa cedendo e a menininha gritando aterrorizada. Em seguida, todos
disparam na direção da criança.
Bob pega a Magnum .357.
Lilly já percorreu metade da distância da calçada rachada até a garota.
O tempo parece ficar suspenso no ar.
Desde que a praga irrompeu, há quase dois anos, a mudança nos padrões de comportamento dos sobreviventes tem sido tão gradual, sutil e progressiva que foi quase invisível. Os sangrentos dias iniciais da Transformação, que a princípio pareciam tão temporários e novos — capturados naquelas manchetes queixosas como os mortos andam, ninguém está seguro e será o fim? — se tornaram rotineiros, e isso aconteceu sem que ninguém de fato percebesse. Os sobreviventes ficaram cada vez mais eficientes em estourar a bolha, atacar sem refletir e sem cerimônia, destruir o cérebro de um cadáver violento com o que tivessem à mão — a espingarda da família, uma ferramenta de agricultura, uma agulha de crochê, uma taça de vinho quebrada, uma relíquia sobre a lareira —, até que o ato mais repulsivo tornou-se lugar-comum. O trauma perde todo o sentido; luto, tristeza e perda são abafados garganta abaixo até que uma dormência coletiva se instaure.
Mas soldados ativos conhecem a verdade sob a mentira. Detetives de homicídios também. Enfermeiras de prontos-socorros, paramédicos
— todos conhecem o segredinho sujo. Não fica nem um pouco mais fácil. Na verdade, isso sobrevive dentro de você. Cada trauma, cada
visão terrível, cada morte insensível, cada ato de violência feroz e ensanguentado em nome da autopreservação: tudo isso se acumula como sedimentos no fundo do coração de uma pessoa, até que o peso se torne insuportável.
Lilly Caul ainda não chegou a esse ponto — como ela está prestes a demonstrar nos próximos segundos para a família Dupree —, mas
está a caminho. Está a algumas garrafas de uísque barato e umas duas noites em claro da total aniquilação de espírito, e é por isso que ela precisa repovoar Woodbury, precisa de contato humano, precisa de uma comunidade, de calor, amor, esperança e gentileza onde puder encontrar. E é por isso que golpeia aquele cadáver fétido de um fazendeiro com extremo preconceito quando ele irrompe da sua toca e segura a bainha surrada da menininha Dupree.
Lilly cobre a distância de 5 metros entre ela e a garota em apenas alguns saltos, ao mesmo tempo em que saca a Ruger SR calibre
.22 do pequeno coldre na traseira do cinto. A arma é de ação dupla, e Lilly a mantém engatilhada e destravada, um pente de fileira única dentro dela com oito balas prontas para detonar e uma sempre na câmara. Não é uma arma de grande capacidade, mas é o bastante para dar conta do trabalho. Lilly está mirando no alvo, a visão se fechando em um túnel conforme dispara na direção da menininha que grita.
A criatura da galeria de esgoto enroscou uma das mãos esqueléticas na bainha xadrez do vestido da criança, o que tirou o equilíbrio da menina e a jogou, estatelada, no cimento. Ela grita sem parar, tentando rastejar para longe, mas o monstro agarra seu vestido e morde o ar ao redor dos tênis dela, os incisivos viscosos estalando como castanholas, movendo-se para cada vez mais perto da carne macia do tornozelo esquerdo de Bethany.
Naquele instante frenético antes de Lilly disparar fogo — uma suspensão onírica do tempo ao qual o povo da praga está quase se acostumando —, o restante dos adultos e das crianças recua e arqueja em uníssono. Calvin tateia em busca da faca de caça no cinto, Bob pega a .357, Meredith cobre a boca e solta um gemidinho de choque, enquanto as outras crianças recuam espantadas, com os olhos arregalados.
A essa altura, Lilly já está próxima do Mordedor, com a Ruger erguida e na mira. Ao mesmo tempo em que empurra a criança para longe do perigo com a ponta da bota, ela desce o cano a centímetros do crânio do monstro. A mão do errante continua enganchada na bainha do vestido da criança, o tecido se rasga e a menininha arranha o concreto.
Quatro disparos rápidos como balões estourando penetram o crânio do Mordedor.
Uma mancha de borrifo de sangue atinge o pórtico atrás da criatura enquanto um fragmento de crânio do tamanho de um biscoito sai voando. O ex-fazendeiro desaba instantaneamente no chão. Um rio de sangue negro escorre em todas as direções por debaixo da cabeça destroçada enquanto Lilly recua, piscando, recuperando o fôlego, tentando não pisar no rastro da poça crescente conforme abaixa o percussor da arma e ativa a trava de segurança.
Bethany continua gemendo e gritando, e Lilly vê que a mão do errante ainda está presa — o rigor mortis contraindo os tendões — em torno de uma parte do vestido xadrez rasgado. A menininha se encolhe e arqueja como se não conseguisse reunir lágrimas depois de tantos meses de horror, e Lilly vai até ela.
— Está tudo bem, querida, não olhe. — Lilly deixa a pistola cair e aninha a cabeça da menina. Os outros se reúnem ao redor deles, Meredith ajoelhada, Lilly golpeando a mão morta com a bota. — Não olhe.
— Ela rasga o vestido. — Não olhe, querida. — A menininha, por fim, encontra as lágrimas. — Não olhe — repete Lilly, sussurrando, quase como que falando consigo mesma.
Meredith puxa a filha para um abraço desesperado e sussurra bem baixinho ao ouvido da criança:
— Está tudo bem, Bethany, querida, estou aqui… estou aqui.
— Acabou. — Lilly abaixa a voz, como se estivesse se convencendo de alguma coisa. Solta um suspiro de agonia. — Não olhe — murmura mais uma vez para si mesma.
Mas Lilly olha.
Ela provavelmente deveria parar de espiar os errantes depois de destruí-los, mas não consegue evitar. Quando o cérebro finalmente sucumbe, o ímpeto sombrio desaparece do rosto deles e a letargia vazia da morte retorna, Lilly vê as pessoas que eles foram. Ela vê um fazendeiro com grandes sonhos que talvez tenha cursado até o ensino fundamental, mas precisou assumir a fazenda do pai doente. Ela vê policiais, enfermeiras, carteiros, balconistas e mecânicos. Vê seu pai, Everett Caul, aconchegado nas dobras de seda de seu caixão, esperando o enterro, em paz e sereno. Ela vê todos os seus amigos e entes queridos que faleceram desde que a epidemia varreu o território — Alice Warren, Doc Stevens, Scott Moon, Megan Lafferty e Josh Hamilton. Está pensando em mais uma vítima quando uma voz áspera quebra o feitiço.
— Menina Lilly? — É a voz de Bob. Baixa. Parece vir de muito longe. — Você está bem?
Durante um último instante passageiro, encarando o rosto morto daquele fazendeiro, ela pensa em Austin Ballard, o jovem que tinha a
beleza andrógina de um astro do rock e cílios longos, que ela viu ser sacrificado em um campo de batalha para salvar Lilly e metade das pessoas de Woodbury, inclusive ela. Será que Austin Ballard foi o único homem que Lilly realmente amou?
— Lilly? — A voz de Bob aumenta um pouco atrás dela, com um tom de preocupação. — Você está bem?
Lilly solta um suspiro doloroso.
— Estou bem… estou bem. — Subitamente, sem aviso, ela fica de pé. Lilly acena com a cabeça para Bob e então pega a pistola, enfiando-a de volta no coldre. Então umedece os lábios e olha ao redor para o grupo. — Está todo mundo bem? Crianças?
As outras duas crianças assentem devagar, olhando para Lilly como se ela tivesse acabado de laçar a Lua. Calvin guarda a faca na bainha e se ajoelha para acariciar o cabelo da filha.
— Ela está bem? — pergunta o homem à esposa.
Meredith dá um breve aceno de cabeça, mas não diz nada. Os olhos da mulher parecem vidrados.
Calvin suspira e fica de pé. Ele se aproxima de Lilly. Ela está ocupada ajudando Bob a arrastar o cadáver para debaixo de uma marquise a fim de recolherem mais tarde. Lilly fica de pé, limpa as mãos na calça jeans e se vira para encarar o recém-chegado.
— Sinto muito por vocês terem que presenciar isso — diz a Calvin.
— Como está a menina?
— Vai ficar bem, ela é forte — responde Calvin. Ele sustenta o olhar de Lilly. — E você?
— Eu? — Lilly suspira. — Estou bem. — Ela emite outro suspiro doloroso. — Só cansada disso.
— Entendo. — O homem inclina um pouco a cabeça. — Você é bem habilidosa com essa arma.
Lilly dá de ombros.
— Não sei quanto a isso. — Então olha ao redor do centro da cidade.
— É preciso ficar de olhos abertos. Este lugar foi palco de muitos tumultos nas últimas semanas. Perdeu uma seção inteira da muralha. Ainda tem alguns desgarrados. Mas estamos retomando o controle.
Calvin consegue dar um sorriso cansado.
— Acredito em você.
Lilly repara em algo pendurado na corrente no pescoço do homem: uma grande cruz de prata.
— Então, o que acha? — pergunta ela.
— Sobre o quê?
— Sobre ficar. Fazer um lar aqui para sua família. O que acha?
Calvin Dupree inspira fundo e se volta para olhar a mulher e a filha.
— Não vou mentir… não é má ideia. — Ele umedece os lábios, pensativo. — Estamos em trânsito há muito tempo, exigindo muito das
crianças.
Lilly olha para ele.
— Este é um lugar em que podem estar seguras, ser felizes, levar uma vida normal… mais ou menos.
— Não estou dizendo que não. — Calvin olha para Lilly. — Só estou pedindo… que nos dê tempo para pensar, fazer uma oração.
Ela assente.
— É claro. — Por um breve momento, pensa nas palavras “fazer uma oração” e imagina como seria ter um religioso no grupo. Alguns dos homens do Governador costumavam pregar sobre terem Deus ao seu lado, sobre o que Jesus faria, e toda essa baboseira de emissora cristã. Lilly nunca teve muito tempo para religião. É claro que rezou silenciosamente em algumas ocasiões desde que a praga irrompeu, mas na cabeça dela, não conta. Como é que dizem? “Não há ateus nas trincheiras.” — Ela encara os olhos cinza-esverdeados de Calvin. — Leve todo o tempo de que precisar. — Lilly sorri. — Olhe em volta, conheça o lugar…
— Isto não será necessário — interrompe uma voz, e todas as cabeças se viram para a mulher esquálida ajoelhada perto da criança trêmula. Meredith Dupree acaricia o cabelo da menina e não faz contato visual ao falar. — Agradecemos sua hospitalidade, mas iremos embora ainda esta tarde.
Calvin olha para o chão.
— Mas, querida, nem mesmo discutimos o que vamos…
— Não há o que discutir. — A mulher ergue o rosto, os olhos brilhando com emoção. Os lábios rachados dela tremem, a pele pálida cora. Meredith parece uma boneca de porcelana delicada com uma rachadura escondida no corpo. — Vamos embora.
— Querida…
— Não há mais nada a discutir.
O silêncio que se segue torna o momento de desconforto quase surreal, conforme o vento balança as copas das árvores, assobiando as treliças e os suportes do estádio adjacente, e o fazendeiro morto apodrece silenciosamente no chão a apenas alguns metros. Todos próximos de Meredith, inclusive Bob e Lilly, olham para baixo com constrangimento mútuo. E o silêncio se prolonga até Lilly murmurar algo:
— Bem, se mudarem de ideia, sempre podem ficar. — Ninguém diz nada. Lilly consegue dar um sorriso torto. — Em outras palavras, a oferta está de pé.
Durante um breve momento, Lilly e Calvin trocam um olhar furtivo, e uma quantidade enorme de informação é compartilhada entre os dois (parte intencional, parte não intencional) sem que uma palavra seja dita. Ela permanece em silêncio por respeito, ciente de que esse assunto entre os dois recém-chegados está longe de ter sido resolvido. Calvin olha para a mulher esquiva enquanto ela dá atenção à criança.
Meredith Dupree parece um fantasma; seu rosto angustiado está tão pálido, fechado e assombrado que ela parece desaparecer gradualmente.
Ninguém percebe no momento, mas essa dona de casa desleixada e diminuta — completamente imperceptível de quase todas as formas concebíveis — provará ser o segundo e mais intenso problema com o qual Lilly e o povo de Woodbury, cedo ou tarde, precisará lidar.