Indivíduos instáveis do grupo capitaneado por Rick Grimes, são dois belos exemplos do tipo de discussão sobre a moral que Robert Kirkman faz tanto nos quadrinhos quanto na série de televisão: personagens ambíguos, que tomam decisões questionáveis e que põem seu grupo em perigo e que lembram uma frase do filósofo francês Jean-Paul Sartre: “o homem está condenado a ser livre”.
Tal frase parece fazer ainda mais sentido no mundo de The Walking Dead: passada o estágio inicial da epidemia zumbi e todo o pânico e desordem, agora que convenções como contar os dias segundo o calendário romano, agora que a sociedade se desfez em pequenos grupos que lutam para sobreviver ao ataque dos mortos-vivos e da transformação moral pela qual passam algum de seus indivíduos. Após a ruína do Estado, da religião organizada, das ideologias políticas, prevalecem de certa forma as ideias de Sartre: o homem é responsável pelas sua ações.
Ou seja, antes de atribuir à divindade ou à natureza, os indivíduos que são responsáveis pela produção da “essência”, ou do “sentido” de suas existências. Na construção dos personagens ao longo da série, vemos os “bad boys” Shane e Merle optarem e praticarem e, logo em seguida, terem que arcar com cada mentira, discussão ou ataque físico. E a própria maneira de arcar de cada um deles revela um pouquinho do que Kirkman intentou.
Shane, ao descobrir que Rick estava vivo, teve que resignar-se: ele não seria mais o líder – já que o policial dado como morto parecia mais racional em suas decisões quanto à sobrevivêndia do grupo – e também teve que ver sua paixão, Lori, voltar para os braços do marido. Tendo que viver tanto em um estado de negação quanto de mentira, tornou-se cada vez mais violento: desde tentar agarrar Lori à força mesmo diante de negativas até chegar ao ponto de matar Otis como “isca” para os zumbis que seguiam os dois enquanto tentavam fugir com os remédios que tratariam da saúde de Carl.
A decadência moral de Shane fez o mesmo ser considerado um indivíduo perigoso para o seu grupo, a sociedade que pertencia nesse momento: ele não respeitara mais a lei de Hershel de não matar os zumbis do celeiro, passara a desrespeitar as ordens de Rick seguidas de forma consensual pelo grupo e tornou-se incapaz de lidar com pontos de vista contrários: tanto de Lori, que o frustrou imensamente quando percebeu que não poderia obrigá-la a ficar com ele (ao que parece pela construção do personagem, não por respeitar a liberdade de escolha dela, já que o mesmo parece acreditar que ela seria sua por direito, mas quando viu que a sociedade não toleraria, teve que abaixar a cabeça) quanto de ameaçar Dale de morte quando o mesmo suspeitava da mentira sobre Otis.
Matar Otis destruiu Shane; matar quem o ameaça pode até ser justificável, mas matar um homem inocente para se salvar é um ato de transgressão moral que desrespeita, em si, todo o pensamento da “minha liberdade acabar enquanto a sua começar”. Shane nesse momento entra não só em crise moral mas em decadência social. Mentir, ameaçar, chantagear, manter relações por impulsão. Shane parou de pensar com a cabeça para ser governado pelo medo, pela vontade de ficar vivo, para se vingar de um mundo que não lhe deu o que queria: a consequência, após completo afastamento, foi a morte pelas mãos de seu melhor amigo Rick e, em seguida, pelas mãos do menino que já começava a considerar como um filho, Carl (o que pode ser considerado como um dos catalisadores da frieza rapidamente assimilada pelo garoto).
Morto por autodefesa: essa foi sua punição por suas transgressões e sua absoluta recusa em tentar expiar seus crimes. Para Shane, repete-se a lógica de Sartre de “o inferno serem os outros” e seu castigo por sua covardia e egoísmo. The Walking Dead aproxima-se da peça “Entre Quatro Paredes” do existencialista francês, substituindo o inferno materializado na forma de um quarto sem espelhos onde cada pessoa teria que conviver com o olhar do outro pelos zumbis, que ao ameaçarem devorar os vivos, levam à superfície pela urgência da escolha entre matar e ficar vivo os verdadeiros limites morais de cada indivíduo.
Se o grupo de Rick ainda sobrevive após tanto tempo, é porque se expõe para o outro, conferencia, dialoga, suporta um ao outro. É isso que faz esse pequeno grupo chamar tanto a atenção do Governador, e sua Woodbury que, apesar de numerosa, é governada pelo medo, insegurança e as mentiras de um psicopata amoral.
E é nesse lugar que descobrimos Merle, que havíamos encontrado brevemente na primeira temporada, dessa vez ganhando um pouco mais de espaço e protagonismo. O redneck brutal, racista e impiedoso é desenvolvido, agora, como também um indivíduo. Merle, que admitiu no episódio 15 da terceira temporada, “This Sorrowful Life”, que nunca matara ninguém até a epidemia zumbi estourar e tornar-se capanga do Governador, é um homem devastado: órfão de mãe, filho de pai alcoolatra e negligente, acabou por desenvolver uma profunda misantropia canalizada através da intolerância, tomando para si a responsabilidade de criar o seu irmão, os dois tornando-se excelentes e mortíferos rastreadores e caçadores.
Separados através do incidente de Atlanta, os irmãos Dixon enfrentaram dilemas e contextos distintos mas igualmente duros; mas cada um aprendeu a reagir de forma diferente frente às adversidades. Enquanto Daryl aprendeu a ser tolerante, a cooperar, a pensar além do laço de sangue e partilhar um senso de comunidade com negros, brancos, asiáticos e latinos, com pessoas mais jovens e também mais maduras, com exigências, cobranças e senso de dever, Merle como capanga é obrigado, para ficar vivo, a executar a mando do governador inocentes; à sequestrar, torturar e intimidar. Um “pau pra toda obra” que, em sua cabeça, “faz o que deve ser feito”.
Merle, com sua subjetividade construída de maneira hostil e agressiva, obviamente não queria ver o grupo da prisão nem pintado de ouro. Movido por instinto de sobrevivência, arrancou a própria mão, matou homens a serviço do Governador e, novamente, sentiu a decepção ao ser traído pelo seu líder que, não apenas totalitário, também vale-se de mentiras e demagogia ao seu bel-prazer. É na terceira temporada que aprendemos que, ainda com todas as suas falhas de caráter, Merle não é, como seu líder, um psicopata.
É justamente no penúltimo episódio da terceira temporada que, finalmente, Michonne consegue tocar no fundo na carranca raivosa que despertou tanta antpiatia ao decorrer da temporada. Merle não hesita em matar, mas jamais gostou de matar. É justamente esse pensamento de “sobrevivência a qualquer custo” que garantiu que sua vida durasse tanto, mas a um custo que o destruiu socialmente: sempre transparente em suas ações e opiniões, tornou-se maldito tanto para o grupo da prisão tanto quanto para Woodbury.
E aí que descobrimos o quanto isso corroía Merle por dentro: busca desesperada por drogas, estranhamento e afastamento do irmão, atrito com Rick, Carol e Glenn. Ele, assim como Shane, não gostou nada do que fez. Ambos justificavam suas ações através de uma profunda indignação (Shane, com sua mentalidade machista, possessiva e autoritária, Merle com sua lógica preconceituosa, desobediente e desajustada). Ambos, com suas escolhas, ameaçaram a segurança e a unidade do grupo.
Mas o penúltimo episódio, através de um ato de redenção, diferenciou Merle de Shane.
Notoriamente racista, foi surpreendente em seu último episódio ele finalmente ser atingido por Michonne – talvez por, assim como Daryl, identificar-se com o outro. No caso, a sobrevivente Michonne, desconfiada, séria e fria na superfície, que também passou, ao se relacionar socialmente com grupos maiores, por desconfiança e suspeita.
Ao se tornar explícita sua condição de pária através dos diálogos, a resolução final de Merle é em grande estilo: ele sabe que Rick, mesmo com a pose de durão e muitas vezes falando grosso, ainda é um indivíduo profundamente perturbado, nem sempre com a coragem necessária para fazer o que deve ser feito e constantemente em dúvida. Não se dá por satisfeito apenas libertando Michonne mas indo combater o arqui-inimigo, o que manipula, tiraniza e mata ao bel-prazer.
E aí que o tal redneck, viciado, racista, brutal e que já executou quase duas dezenas de pessoas tem sua vez de provar-se humano, colocando-se em risco pela primeira vez não para ganhar status, não para intimidar ou provocar, mas para ajudar o grupo que o seu irmão tornara-se devoto, levando-o quase a ser abandonado por Daryl. Se antes, só voltara à prisão porque Daryl estava indo, agora ele “fez o que deve ser feito” de forma espontânea. Como um ato de sacrifício que enfraquece as forças do Governador.
Somos o que nossas escolhas fazem de nós: apesar de injusta, a morte de Merle, por causa de sua tomada de consciência, foi muito mais “digna” que a de Shane. Enquanto Shane acabou por tornar-se um traidor, um desertor da causa, Merle foi o “soldado pródigo”, que resolveu voltar para o seu batalhão no último minuto e escolheu morrer lutando. Existem mortes e mortes. O Shane zumbi foi erradicado devido à sua ameaça. O Merle zumbi teve alguém para o seguir e para o colocar no descanso eterno. Com certeza soltar Michonne e armar uma ofensiva solitária contra o Governador o fez crescer nos olhos de muita gente.
Walking Dead é uma das séries que mais lembram a importância e o peso das nossas escolhas, da nossa responsabilidade enquanto indivíduos de arcar com a consequência de nossos atos. Se toda ação tem uma reação, no mundo de Walking Dead isso é uma constante muito mais explícita e importante: cada pequena escolha, construída ao longo de vários episódios, irá nos dizer o quanto sobreviveremos antes de tombar e voltar como um deles. Nossas escolhas e nossos sacrifícios pessoais dizem sobre nós o quanto valorizamos a vida – e no caso do sacrifício do “eu”, o quanto valorizamos a posterioridade. Há os que só pensam no agora, há os que só pensam no futuro – e seus atritos enquanto indivíduos. Shane e Merle são, entre outros tantos, dois exemplares fascinantes da variada fauna humana de The Walking Dead, uma série essencialmente sobre humanidade e consciência.
Texto por Bernardo Brum.