The Walking Dead: O Caminho para Woodbury – Leia o 1º capítulo

O Governador, maior vilão de Rick Grimes e os outros sobreviventes, está de volta no segundo livro da franquia The Walking Dead. “O Caminho para Woodbury”, continuação direta de “A Ascensão do Governador”, segue mostrando a tortuosa trajetória de Phillip Blake, agora auto proclamado líder da pequena cidade de Woodbury. E desta vez veremos a perspectiva de outros personagens, como Lilly Caul.

O livro, que foi lançado no Brasil no dia 15 de Janeiro de 2013, já é um sucesso nos EUA desde seu lançamento em Outubro de 2012. Confira a sinopse e mais informações.

 

LEIA O PRIMEIRO CAPÍTULO

Para atiçar a curiosidade dos fãs, o primeiro capítulo em português foi disponibilizado pela editora Galera Record. Leia a seguir.

 

UM

Ninguém na clareira ouve os Mordedores chegando por entre as árvores altas.

O retumbante som metálico das estacas das tendas penetrando o barro frio e resistente da Geórgia abafa os passos distantes — os intrusos ainda estão a uns bons 450 metros de distância à sombra dos pinheiros que os cercam. Ninguém escuta os galhos estalando sob o ruído do vento norte, nem os característicos gemidos guturais, tão fracos quanto o ruído dos mergulhões que se escondem atrás das copas das árvores. Ninguém detecta os traços do fedor de carne pútrida e mofo marinado em fezes. O forte odor da fumaça de madeira outonal e das frutas que apodrecem na brisa vespertina oculta o cheiro dos mortos-vivos.

Na verdade, por um bom tempo, nenhum dos colonos do acampamento que ali floresce rapidamente registra qualquer perigo iminente — a maioria dos sobreviventes está ocupada erguendo vigas de sustentação improvisadas originárias de objetos encontrados; dormentes de estrada de ferro, postes telefônicos e pedaços enferrujados de vergalhão.

— Que patético… olhe só para mim — comenta com um suspiro exasperado a mulher esbelta com o cabelo preso em um rabo de cavalo, agachada desajeitadamente ao lado de um pedaço quadrado de lona de barraca salpicada de tinta, dobrada no chão no canto noroeste do terreno. Ela treme dentro de seu volumoso moletom do Georgia Tech, que cobre joias antigas e o jeans rasgado. O rosto sardento corado, os longos cabelos castanho-escuros pendendo em cachos enredados a pequenas e delicadas penas, Lilly Caul é uma coleção de tiques nervosos, que vão de enfiar constantemente mechas soltas de cabelo para trás das orelhas a roer compulsivamente as unhas. Agora, com a pequena mão, ela aperta com mais força o cabo do martelo e golpeia diversas vezes uma estaca de metal, apenas roçando a extremidade como se estivesse lubrificada.

— Não tem problema, Lilly, relaxe — diz o homem grande que observa tudo atrás dela.

— Uma criança de 2 anos é capaz de fazer isso.

— Pare de ser tão dura consigo mesma.

— Não sou eu quem está sendo dura. — Ela bate um pouco mais, segurando o martelo com as duas mãos. A estaca não se mexe. — É essa estaca idiota.

— Você está segurando o cabo do martelo muito em cima.

— Estou o quê?

— Coloque a mão mais para o final do cabo, deixe a ferramenta fazer o trabalho.

Mais marteladas.

A estaca pula do chão duro, sai voando e cai a 3 metros de distância.

— Droga! Droga! — Lilly acerta o chão com o martelo, olha para baixo e suspira.

— Você está indo bem, garota, deixa eu te mostrar.

O homenzarrão se coloca ao lado dela, ajoelha-se e avança gentilmente a fim de pegar o martelo de sua mão. Lilly recua, recusando-se a entregar a ferramenta.

— Me dê mais um segundo, está bem? Eu consigo lidar com isso, posso — insiste ela, e os ombros estreitos se tencionam sob o moletom.

Ela pega outra estaca e recomeça, golpeando a cabeça de metal sem segurança. O chão resiste, duro como cimento. Outubro tem sido um mês frio até o momento, e os campos abandonados ao sul de Atlanta endureceram. Não que isso seja ruim. O barro duro também é poroso e seco — pelo menos por enquanto —, daí a decisão de montar acampamento naquele local. O inverno está chegando, e essas pessoas vêm se reagrupando ali há mais de uma semana, estabelecendo-se, recarregando, repensando o futuro — se é que terão algum.

— Você só precisa deixar a cabeça cair sobre a estaca — demonstra ao lado dela o robusto afro-americano, meneando o enorme braço. As mãos imensas provavelmente conseguiriam envolver a cabeça dela. — Use a gravidade e o peso do martelo.

Lilly precisa fazer um grande esforço para não fixar o olhar no braço do homem, que oscila para cima e para baixo. Mesmo agachado, usando a camisa de brim sem mangas e um colete acolchoado puído, Josh Lee Hamilton ostenta uma aparência imponente. Embora tenha o corpo de um jogador de futebol americano, ombros monolíticos, enormes coxas de tronco de árvore e um pescoço grosso, ele consegue se movimentar com bastante leveza. Seus olhos tristes de cílios longos e o semblante cortês, que enruga perpetuamente a fronte meio calva, transmitem um ar de inesperada ternura.

— Não é difícil… viu? — Ele demonstra de novo, e o bíceps tatuado, grande como uma pancetta, salta quando maneja o martelo imaginário. — Entende o que estou dizendo?

Lilly desvia os olhos discretamente do braço definido de Josh. Ela sente um ligeiro arrepio de culpa toda vez que repara em seus músculos, nas costas amplas, nos ombros largos. A despeito da quantidade de tempo que passam juntos nesse inferno na Terra, ao qual alguns georgianos estão chamando “a Mudança”, Lilly tem evitado escrupulosamente qualquer ligação íntima com Josh. Melhor manter o relacionamento platônico, fraterno, de melhores amigos, nada mais. Melhor ser estritamente prática… especialmente em meio a esta praga.

Mas isso não impede Lilly de lançar ao homenzarrão tímidos sorrisinhos dissimulados quando ele a chama de “garota” ou “boneca”… ou de deixá-lo ter um vislumbre do caractere chinês tatuado em seu cóccix à noite, quando está se acomodando no saco de dormir. Será que está dando falsas esperanças a ele? Que o está manipulando para obter proteção? As perguntas retóricas continuam sem resposta.

Para Lilly, as brasas do medo que ardem constantemente em suas entranhas cauterizaram todas as questões éticas e nuances de comportamento social. Na verdade, o medo a perseguira pela maior parte da vida — ela desenvolveu uma úlcera no ensino médio e teve de tomar medicamentos ansiolíticos durante a passagem malsucedida pelo Georgia Tech —, mas agora ele fervilha constantemente dentro dela. O medo envenena seu sono, nubla os pensamentos, pressiona seu coração. O medo a obriga a fazer coisas.

Ela agarra o martelo com tanta força que as veias do pulso estremecem.

— Pelo amor de Deus, isso não é nenhum bicho de sete cabeças! — vocifera ela, conseguindo finalmente controlar o martelo e enfiar uma estaca no chão por pura raiva. Ela pega outra estaca. Vai até o canto oposto da lona e força a ponta de metal diretamente através do tecido e para dentro da terra, martelando furiosa e desenfreadamente, errando tantos golpes quanto acerta. O suor brota em seu pescoço e em sua testa. Ela martela sem parar. Ela perde o controle por um momento.

Finalmente, para, exausta, ofegante, molhada de suor.

— OK… Também dá para fazer desse jeito — diz Josh suavemente, levantando-se com um sorriso malicioso no rosto moreno cinzelado enquanto observa a meia dúzia de estacas que prende a lona ao chão. Lilly não diz nada.

Os zumbis, chegando despercebidos por entre as árvores a norte, estão a menos de cinco minutos de distância.

Nenhum dos outros sobreviventes, companheiros de Lilly Caul — que já são quase cem, e agrupam-se com relutância na tentativa de construir ali uma comunidade heterogênea —, percebe a desvantagem inevitável daquele terreno rural abandonado no qual ergueram suas tendas improvisadas.

À primeira vista, a propriedade parece ideal. Situada em uma área verdejante 80 quilômetros ao sul da cidade — uma área que, em média, produz milhões de alqueires de pêssegos, peras e maçãs anualmente —, a clareira fica em uma bacia natural de capim seco e terra compacta. Abandonado por seus antigos proprietários — provavelmente donos dos pomares próximos — o terreno é do tamanho de um campo de futebol. Estradas de cascalho rodeiam a propriedade. Ao longo dessas vias sinuosas erguem-se paredes densas e frondosas de pinheiros e carvalhos que se estendem pelas colinas.

Na extremidade norte do pasto ficam os restos dizimados e queimados de uma grande mansão, com as trapeiras enegrecidas destacando-se contra o céu como esqueletos petrificados e as janelas estraçalhadas pelo recente turbilhão. Nos últimos meses, incêndios destruíram grandes extensões dos subúrbios e das casas de fazenda ao sul de Atlanta.

Em agosto, após os primeiros contatos humanos com os cadáveres ambulantes, o pânico que varreu o Sul prejudicou a infraestrutura de emergência. Hospitais ficaram superlotados e depois fecharam, unidades do corpo de bombeiros ficaram incomunicáveis, a Interestadual 85 foi obstruída por veículos destruídos. As pessoas desistiram de encontrar estações em seus rádios a pilha e começaram a procurar suprimentos para recolher, lugares para saquear, alianças para fazer e áreas onde se abrigar.

As pessoas que estão reunidas nesta propriedade rural abandonada se encontraram nas estradas de terra vicinais que serpenteiam através da colcha de retalhos formada pelas inúmeras fazendas de tabaco e shoppings de estrada desertos dos condados de Pike, Lamar e Meriwether. Abrangendo todas as idades, incluindo mais de uma dúzia de famílias com crianças pequenas, o comboio de veículos engasgados e agonizantes cresceu… até que a necessidade de encontrar abrigo e espaço se tornou suprema.

Agora eles se espalham por esse lote de quase 1 hectare de terra abandonada, como se regredissem a uma espécie de Hooverville* da Depressão, uns vivem em carros, outros abrem vãos no capim mais tenro, alguns já estão abrigados em pequenas tendas triangulares na periferia. Eles têm pouquíssimas armas de fogo, e menos munição ainda. Instrumentos de jardinagem, acessórios esportivos e equipamentos de cozinha — todos as amenidades da vida civilizada — agora servem como armas. Dezenas desses sobreviventes ainda estão enfiando estacas no chão frio e áspero, trabalhando diligentemente, correndo contra um relógio invisível e subentendido, esforçando-se para erigir seus santuários improvisados — todos inconscientes do perigo que se aproxima por entre os pinheiros a norte.
* Hooverville era o nome dado às favelas construídas pelos que ficaram sem-teto durante a Grande Depressão, muito comuns em 1920. (N. do T.)
Um dos colonos, um homem alto e esguio de trinta e poucos anos usando um boné da John Deere e uma jaqueta de couro, está parado sob a borda de uma gigantesca área de lona no centro do pasto, seus traços cinzelados são obscurecidos pelo tecido da enorme tenda. Ele supervisiona um grupo de adolescentes mal-humorados sob a lona.

— Vamos, senhoritas, deem o sangue! — vocifera ele, gritando acima da balbúrdia de metal retinindo que enche o ar gelado.

Os adolescentes se atrapalham com uma pesada viga de madeira que serve como mastro central do que é essencialmente uma grande lona de circo. Eles a encontraram na I-85, estendida em uma vala perto de uma carreta capotada em cuja lateral havia a insígnia gasta de um gigante palhaço com a tinta descascada. Com uma circunferência de mais de 100 metros, a grande tenda de circo suja e puída — que cheira a mofo e excremento de animais — pareceu ao homem com o boné da John Deere a cobertura perfeita para uma área comum, um lugar para guardar os suprimentos, um lugar para manter a ordem, um lugar para manter alguma aparência de civilização.

— Cara… isso não vai segurar o peso — reclama um dos adolescentes, um garoto preguiçoso usando um casaco do Exército, chamado Scott Moon. Seu cabelo comprido louro pende sobre o rosto, e a respiração fica visível enquanto ele bufa e se esforça com os outros garotos góticos, cheios de tatuagens e piercings, de seu colégio.

— Pare de reclamar, vai segurar, sim — retruca o homem de boné com um grunhido. Seu nome é Chad Bingham, um dos homens de família do assentamento, pai de quatro meninas: uma de 7 anos, duas gêmeas de 9 e uma adolescente. Infeliz em seu casamento com uma garota submissa de Valdosta, Chad se considera um disciplinador rigoroso, exatamente como o pai era. Mas seu pai teve filhos homens e nunca precisou lidar com as coisas femininas sem sentido. Aliás, o pai
de Chad nunca teve que lidar com sacos apodrecidos de pus e carne morta que perseguem os vivos. Portanto, agora Chad assume o controle, o papel de macho alfa… porque, como dizia seu pai: “Alguém tem que fazê-lo.” Ele lança um olhar feroz para os garotos.

— Aguentem firme!

— Não vai ficar mais alto do que já está — resmunga um dos garotos góticos através de dentes cerrados.

— Você é que está alto — brinca Scott Moon, com uma risadinha abafada.

— Segurem firme! — ordena Chad.

— O quê?

— Eu disse para segurar FIRME essa merda! — Chad enfia um contrapino de metal através de uma ranhura na viga. As paredes externas do enorme pavilhão de lona tremulam no vento outonal, causando um estrondo, enquanto outros adolescentes correm em direção aos cantos mais afastados com vigas de sustentação menores.

Quando a grande cobertura toma forma e o panorama da clareira fica visível para Chad pela ampla abertura em uma das extremidades, seu olhar atravessa o capim marrom achatado do pasto, passando por carros com capôs abertos, por bandos de mães e filhos sentados no chão contando as magras provisões de frutinhas silvestres e detritos de máquinas de salgadinhos, pela meia dúzia de picapes repletas de bens materiais.

Por um instante, Chad trava o olhar com o grande sujeito negro a quase 30 metros de distância, perto do canto norte da propriedade, montando guarda para Lilly Caul como um gigantesco leão de chácara em algum clube ao ar livre. Chad conhece Lilly de nome, mas é só isso. Ele não sabe muito sobre a garota — a não ser pelo fato de que ela é “uma das amigas da Megan” — e sabe menos ainda sobre o homem grande. Chad esteve próximo do gigante durante semanas e não consegue sequer lembrar o nome dele. Jim? John? Jack? Na verdade, Chad não sabe nada sobre nenhuma dessas pessoas, a não ser que estão totalmente desesperadas, apavoradas e implorando por disciplina.

Mas há algum tempo Chad e o grande sujeito negro têm trocado olhares carregados. Medindo um ao outro. Avaliando um ao outro. Nem sequer uma palavra foi trocada, mas Chad sente que está sendo desafiado. Provavelmente, o grandão conseguiria vencê-lo em um corpo a corpo, no entanto, o homem de família nunca deixaria chegar a esse ponto. Tamanho não é documento para uma bala de calibre .38 que está convenientemente acomodada na Smith & Wesson modelo 52
cromada enfiada e escondida no largo coldre de Chad.

Só que agora uma corrente inesperada de reconhecimento se arqueia como um raio através dos 30 metros que separam os dois homens. Lilly continua ajoelhada diante do negro, espancando furiosamente as estacas, mas algo sombrio e perturbador lampeja de repente no fundo dos olhos do sujeito quando ele encara Chad. A percepção chega rapidamente, em estágios, como um circuito elétrico se incendiando.

Mais tarde, os dois homens concluirão, independentemente, que — assim como todos os outros — deixaram passar dois fatos muito importantes que estão ocorrendo naquele momento. Primeiro, o barulho que a construção das tendas na clareira está gerando na última hora tem atraído os errantes. Segundo, e talvez mais importante, a propriedade tem uma única deficiência crítica.

Depois do ataque, os dois homens perceberão mortificados, cada um por si, que, devido à barreira natural fornecida pela floresta adjacente, que se estende até o topo de uma colina vizinha, qualquer som natural que ocorra atrás das árvores é abafado, amortecido, quase eliminado pela topografia.

Na verdade, mesmo que uma banda marcial universitária chegasse pelo alto daquele platô, um colono não a ouviria até que os pratos estalassem bem na sua cara.
Lilly Caul permanece tranquila e alheia ao ataque por vários minutos. Apesar das coisas terem começado a se desenrolar com grande velocidade ao seu redor, o barulho das vozes e dos martelos retinido é substituído pelos gritos dispersos das crianças. Lilly continua enfiando furiosamente estacas no chão — confundindo os berros dos mais novos com brincadeiras — até o momento em que Josh agarra a gola de seu moletom.

— O quê… — Lilly se contrai com o susto, voltando-se para o homem com uma expressão surpresa.

— Lilly, temos que…
Josh mal termina a primeira parte da frase quando uma figura sombria e cambaleante sai das árvores a menos de 4 metros de distância. Ele não tem tempo de correr, não tem tempo de salvar Lilly, não tem tempo de fazer nada além de arrancar o martelo da mão da garota e empurrá-la para longe do perigo.

Lilly cai e rola instintivamente antes de se situar e se levantar de novo, com um grito preso no fundo da garganta.

O problema é que o primeiro cadáver que entra cambaleando na clareira — um errante alto e pálido usando uma bata hospitalar suja, com metade do ombro faltando e as fibras dos tendões pulsando como vermes — é seguido por mais duas criaturas. Uma mulher e um homem, ambos com bocas que parecem valas abertas, lábios descorados vertendo bílis preta, olhos de botão fixos e vidrados.

Os três se aproximam com o característico passo espasmódico, as mandíbulas estalando, os lábios deixando entrever dentes enegrecidos, como piranhas.

Nos vinte segundos que os três errantes levam para cercar Josh, a cidade de tendas passa por uma mudança rápida e dramática. Os homens vão buscar suas armas caseiras, aqueles que têm pistolas levam a mão aos coldres improvisados. Algumas das mulheres mais ousadas agarram tábuas de madeira, ganchos de feno, forcados e machados enferrujados. Guardiães correm com suas crianças pequenas para dentro dos carros e das cabines das caminhonetes. Punhos cerrados esmurram
pinos. Caçambas traseiras são fechadas com estrondo.

De uma maneira estranha, os poucos gritos que ressoam — das crianças, principalmente, e de algumas mulheres mais velhas que talvez estejam em estado inicial de senilidade — mínguam depressa, substituídos pela calma sinistra de uma tropa em manobra ou de uma milícia provisória. No intervalo de vinte segundos, o barulho de surpresa rapidamente se transforma na atividade da defesa, da repulsão e da raiva canalizada para a violência controlada. Essas pessoas já fizeram isso. Há uma curva de aprendizagem em ação ali. Alguns dos homens armados se espalham em direção às margens do campo, pegando calmamente seus martelos, enfiando balas na culatra das espingardas, empunhando pistolas de exibição roubadas ou revólveres de família enferrujados. O primeiro tiro que ressoa é o estalo seco de uma Ruger calibre .22 — de forma alguma a arma mais poderosa, porém certeira e fácil de disparar. A explosão arranca a parte de cima do crânio de uma mulher morta a cerca de 30 metros de distância.

A mulher mal sai das árvores antes de cair no chão em um batismo de fluido craniano oleoso, que se despeja sobre ela em grossos borbotões. Esse abate acontece dezessete segundos depois do começo do ataque. No vigésimo segundo, as coisas começam a acontecer em um passo mais rápido.

Na extremidade norte do terreno, Lilly Caul está se movendo, colocando-se de pé, movimentando-se com a rigidez lenta e confusa de um sonâmbulo. O instinto assume o controle, e ela percebe que está se afastando quase involuntariamente de Josh, que logo é cercado por três cadáveres. Ele tem um martelo. Não tem uma arma. E três bocas apodrecidas repletas de dentes pretos se aproximam.

Ele gira em direção ao zumbi mais próximo enquanto o resto do acampamento se espalha. Josh enfia a ponta afiada do martelo na têmpora daquele que está usando um avental hospitalar. O som da fratura lembra o de uma fôrma de gelo sendo torcida. Massa cerebral jorra, a lufada de decomposição comprimida é liberada com um sopro audível, quando o ex-paciente cai.

O martelo fica preso, e é arrancado da grande mão de Josh quando o errante se dobra.

Ao mesmo tempo, outros sobreviventes espalham-se por todos os cantos da clareira. Na extremidade mais distante das árvores, Chad bota sua Smith cromada em ação, acertando a cavidade ocular de um velho esquálido sem metade do maxilar, então o morto geriátrico gira em uma névoa de fluidos rançosos, caindo no capim. Atrás de uma fila de carros, a armação de uma tenda é enfiada na boca de uma mulher que ruge, prendendo-a ao tronco de um carvalho. Na extremidade leste do pasto, um machado abre um crânio apodrecido com a facilidade que teria para dividir ao meio uma romã. A cerca de 20 metros dali, o estouro de uma espingarda vaporiza a vegetação, assim como a metade superior do corpo de um ex-homem de negócios em decomposição.

Do outro lado do terreno, Lilly Caul — ainda se afastando da emboscada que engole Josh — se contrai e estremece na algazarra da matança. O medo perfura sua pele como agulhas, tirando o fôlego e dominando o cérebro. Ela vê o grande homem negro de joelhos, se rastejando, tentando alcançar o martelo, enquanto os outros dois errantes se aproximam como aranhas pela lona caída em direção a suas pernas. Um segundo martelo está na grama, fora de seu alcance.

Lilly se vira e corre.

Ela demora menos de um minuto para percorrer o espaço entre a fileira externa de tendas e o centro do pasto, onde mais de vinte almas
enfraquecidas estão aglomeradas entre as caixas e provisões estocadas sob a lona de circo parcialmente erigida. Diversos veículos foram ligados e agora param perto desse grupo amontoado em meio a nuvens de monóxido de carbono. Homens armados na traseira de uma carreta protegem as mulheres e crianças enquanto Lilly se abaixa atrás de um velho baú de viagem, com os pulmões arfando por ar e a pele formigando de terror.

Ela fica desse jeito durante todo o ataque, com as mãos sobre as orelhas. Não vê Josh perto das árvores, agarrando o martelo enterrado no cadáver caído, arrancando-o no último instante possível e brandindo-o na direção do agressor mais próximo. Ela não vê a extremidade achatada do martelo atingindo a mandíbula do zumbi, quebrando ao meio o crânio apodrecido com a enorme força do golpe de Josh. E Lilly perde a última parte da luta; a da mulher quase cravando os incisivos pretos no tornozelo de Josh antes de uma pá fincar-se em sua nuca. Diversos homens chegaram até Josh a tempo de liquidar o último zumbi, e Josh se afasta; ileso, mas trêmulo por conta da adrenalina e do nervosismo de ter escapado por um triz.

Todo o ataque — agora subjugado e se desvanecendo em um suave murmúrio de crianças choramingando, fluidos pingando e na liberação de gases da decomposição — durou menos de 180 segundos.

Mais tarde, quando arrastam os corpos para um leito seco de rio ao sul, Chad e os outros machos alfa contam 24 errantes ao todo — um nível de ameaça totalmente viável… pelo menos por enquanto.

 

 

— Nossa, Lilly, por que você simplesmente não toma coragem e vai se desculpar com o homem? — A jovem chamada Megan se senta em um cobertor do lado de fora da tenda de circo, observando o café da manhã intocado na frente de Lilly.

O sol acabou de sair, pálido e frio no céu limpo — mais um dia na cidade de tendas —, e Lilly está sentada diante de um fogão portátil Coleman, bebendo café instantâneo em um copo de papel. Os restos frios dos ovos desidratados ficam na frigideira enquanto ela tenta afastar as reflexões culpadas de uma noite em claro. Neste mundo, não existe descanso para os exaustos nem para os covardes.

Ao redor da grande e puída tenda de circo — agora totalmente montada — o alvoroço dos sobreviventes continua, quase como se o ataque do dia anterior não tivesse acontecido. Pessoas carregam cadeiras e mesas dobráveis para a grande tenda através da ampla abertura em uma das extremidades (que provavelmente um dia foi a entrada para elefantes e carros de palhaços), enquanto as paredes externas da tenda palpitam com as brisas inconstantes e mudanças na pressão do
ar. Em outras partes do acampamento, mais abrigos são levantados. Pais se reúnem e fazem um inventário da lenha, água mineral, munição, armas e enlatados. Mães cuidam das crianças, dos cobertores, dos casacos e dos remédios.

Se olhasse com mais atenção, um observador perspicaz perceberia uma camada de ansiedade mal disfarçada em cada atividade. Mas não se sabe qual dos perigos é a maior ameaça: os mortos-vivos ou o inverno iminente.

— Ainda não pensei no que falar — murmura finalmente Lilly, bebendo o café morno.

Suas mãos não pararam de tremer. Já se passaram 18 horas desde o ataque, mas Lilly ainda se aflige de vergonha, evitando o contato com Josh, isolando-se, convencida de que ele a odeia por ter fugido e o deixado para morrer. Josh tentou falar com ela algumas vezes, mas Lilly não conseguiu lidar com ele, e disse que estava se sentindo mal.

— O que há para dizer? — Megan procura na jaqueta jeans seu minúsculo cachimbo. Ela soca um pouquinho de maconha na ponta e acende com um isqueiro Bic, dando um saudável tapa. A jovem de pele oliva, com quase 30 anos, cachos pintados com hena soltos caindo ao redor do rosto fino e astuto solta a fumaça e tosse. — Quero dizer, olhe para aquele cara, ele é enorme.

— Do que você está falando?

Megan sorri.

— Só estou dizendo que um cara assim consegue se cuidar sozinho.

— Essa não é a questão.

— Você está dormindo com ele?

— O quê? — Lilly olha para a amiga. — Está falando sério?

— É uma pergunta simples.

Lilly balança a cabeça, suspira.

— Não vou nem me dar ao trabalho de resp…

— Não está… não é? Lillyzinha Boazinha. Boazinha até o fim.

— Quer parar?

— Mas por quê? — O sorriso de Megan se torna malicioso. — Por que você ainda não montou nele? O que está esperando? Aquele corpo… aqueles bíceps que ele tem…

— Pare com isso! — A raiva de Lilly dispara uma dor aguda e intensa atrás da ponte de seu nariz.

Suas emoções estão à flor da pele, o tremor recomeça, até ela se surpreende com o volume de sua voz.

— Eu não sou igual a você… OK? Não sou tão sociável. Nossa, Meg, eu perdi a conta. Qual desses caras está com você agora?

Megan a encara por um instante, tosse, depois recarrega o cachimbo.

— Quer saber? — Megan oferece o cachimbo. — Por que você não se acalma um pouco? Relaxa?

— Não, obrigada.

— Faz bem para o que está te incomodando. Vai acabar com esse remorso.

Lilly esfrega os olhos, balança a cabeça.

— Você é uma figura, Meg.

Megan dá outro tapa, e assopra a fumaça.

— Prefiro ser uma figura a ser uma idiota.

Lilly não diz nada, apenas continua balançando a cabeça. A triste verdade é que Lilly às vezes se pergunta se Megan Lafferty não é exatamente assim — uma idiota. As duas se conhecem desde o último ano do ensino médio na Sprayberry High School, em Marietta. Eram inseparáveis na época, compartilhavam tudo, desde lição de casa a drogas e namorados. Mas então Lilly começou a querer ter uma carreira, passou dois anos de purgatório no Massey College of Business
em Atlanta, e depois foi para o Georgia Tech fazer um MBA que nunca chegaria a obter. Ela queria ser estilista, talvez começar a criar para a
própria grife, mas só chegou até a recepção em sua primeira entrevista — um estágio extremamente cobiçado na Mychael Knight Fashions — antes de amarelar. Seu velho companheiro, o medo, estragava todos os seus planos.

O medo a fez fugir daquele extravagante saguão, desistir de tudo e voltar para Marietta e retomar o estilo de vida ocioso com Megan, se
drogando, sentada no sofá assistindo a reprises de Project Runway.

Mas alguma coisa havia mudado entre as duas mulheres nos últimos anos, algo fundamentalmente químico — para Lilly era claro, como uma barreira idiomática. Megan não tinha ambição, direção, nem foco, e não via problema nisso. Mas Lilly ainda nutria sonhos — sonhos impossíveis, talvez, mas mesmo assim sonhos. Ela desejava secretamente ir para Nova York, começar um site ou voltar para aquela recepcionista na Mychael Knight e dizer, “Ops, desculpe, tive que me
ausentar por um ano e meio…”

O pai de Lilly — professor de matemática, aposentado e viúvo, chamado Everett Ray Caul — sempre encorajava a filha. Everett era um homem gentil e respeitoso que, depois da morte lenta da esposa por câncer de mama em meados da década de 1990, assumiu a responsabilidade de criar a filha única com carinho. Ele sabia que ela queria mais da vida, mas também sabia que precisava de amor incondicional, que precisava de uma família, que precisava de um lar. E Everett era tudo o que ela tinha. E foram todas essas coisas que tornaram os eventos dos últimos meses tão infernais para Lilly.

O primeiro surto de errantes atingiu violentamente o norte do condado de Cobb. Eles vieram das periferias, dos parques industriais a norte das florestas de Kennesaw, infiltrando-se entre a população como células malignas. Everett decidiu pegar Lilly e fugir em sua velha perua Volkswagen, mas só conseguiram chegar até a U.S. 41 antes de os destroços de carros interrompê-los. Encontraram um ônibus municipal desgarrado a 1,5 km ao sul de onde estavam — percorrendo as ruas secundárias, recolhendo sobreviventes — e quase conseguiram subir a bordo. Até hoje, a imagem do pai empurrando-a pela porta do ônibus que se fechava enquanto os zumbis se aproximavam assombra os sonhos de Lilly.

O coroa salvou sua vida. Ele bateu aquela porta sanfonada no último instante possível, e escorregou para o chão, já em poder de três canibais. O sangue espirrou pelo vidro enquanto o ônibus arrancava dali. Lilly gritou até que as cordas vocais se exaurissem. Depois, ela entrou em uma espécie de estado catatônico, encolhida em posição fetal em um dos bancos, olhando fixamente para a porta manchada de sangue do pai até chegar em Atlanta.

Foi um pequeno milagre Lilly encontrar Megan. Naquela altura do surto, os celulares ainda funcionavam, e ela conseguiu marcar um encontro com a amiga nas cercanias do aeroporto Heartsfield. As duas mulheres partiram juntas a pé, pedindo caronas para o Sul, dormindo em casas vazias, concentrando-se apenas na sobrevivência. A tensão entre elas se intensificou. Cada uma parecia estar compensando o terror e a perda de um jeito diferente. Lilly se introverteu. Megan fez o contrário, passando a maior parte do tempo drogada, falando sem parar e envolvendo-se com qualquer viajante que cruzasse o caminho delas.

Elas se juntaram a uma caravana de sobreviventes a 50 km a sudeste de Atlanta — três famílias de Lawrenceville, viajando em minivans. Megan convenceu Lilly de que era mais seguro ficar com um grupo, e Lilly concordou em seguir com eles por algum tempo. Ela ficou na sua durante as semanas seguintes, quando ziguezaguearam pelo cinturão das frutas, mas Megan logo se interessou por um dos maridos. Seu nome era Chad, e ele tinha o jeito do típico sulista durão, com seu rapé Copenhagen sob o lábio e as tatuagens da marinha nos braços rijos. Lilly ficou horrorizada ao ver o flerte acontecer em meio àquele pesadelo, e não demorou até que Megan e Chad estivessem saindo de fininho para as sombras das paradas na estrada para “se aliviar”. A distância entre Lilly e Megan aumentou ainda mais.

Foi nessa época que Josh Lee Hamilton entrou em cena. Certo dia, ao anoitecer, a caravana tinha sido encurralada por um grupo de mortos em um estacionamento do Kmart, quando o grande Beemote afro-americano veio em nosso socorro, saindo das sombras do galpão de carga. Apareceu como um gladiador mouro, brandindo as enxa das de jardinagem com as etiquetas de preço ainda tremulando ao vento. Despachou facilmente a meia dúzia de zumbis, e os integrantes da caravana o agradeceram profusamente. Ele mostrou ao grupo algumas espingardas novas em folha nos corredores dos fundos da loja, assim como equipamentos de camping.

Josh dirigia uma moto, e depois de ajudar a carregar as minivans com provisões, decidiu se juntar ao grupo, acompanhando-os na moto enquanto a caravana se aproximava da miscelânea de pomares abandonados no condado de Meriwether.

Agora Lilly começava a se arrepender do dia em que concordou em ir na garupa da grande Suzuki. Será que seu apego àquele homenzarrão é apenas uma projeção do luto pela perda do pai? Será que é um ato desesperado de manipulação em meio a um terror interminável? Será que era vulgar e transparente como a promiscuidade de Megan? Lilly se pergunta se seu ato de covardia — abandonar Josh no campo de batalha no dia anterior — foi um ato subconsciente doentio e sombrio de profecia autorrealizável.

— Ninguém está dizendo que você é idiota, Megan — diz finalmente Lilly, com a voz tensa e pouco convincente.

— Não precisa dizer. — Megan bate furiosamente o cachimbo no fogão. Ela se levanta. — Você já disse mais que o bastante.

Lilly fica de pé. Ela se acostumou com essas guinadas de humor repentinas da amiga.

— Qual é o seu problema?

— Você… você é o meu problema.

— De que merda está falando?

— Deixa pra lá, não aguento mais isso — diz Megan, o tom triste da voz filtrado pela onda da erva agindo sobre ela. — Boa sorte, garotinha… Você vai precisar.

Megan sai pisando duro em direção à fila de carros na extremidade leste da propriedade.

Lilly observa a amiga desaparecer atrás de um trailer alto carregado de caixas de papelão. Os outros sobreviventes praticamente não percebem o desentendimento entre as duas garotas. Algumas cabeças se viram, alguns sussurros são trocados, mas a maioria dos colonos continua ocupada em reunir e contar suprimentos, com expressões sombrias contraídas de tensão nervosa. O vento cheira a metal e granizo. Está chegando uma frente fria.

Olhando através da clareira, Lilly fica momentaneamente transfixada por toda a atividade. A área parece um mercado de pulgas repleto de compradores e vendedores, pessoas trocando suprimentos, empilhando lenha e jogando conversa fora. Pelo menos vinte tendas menores alinham-se agora na periferia da propriedade, alguns varais de roupa estão amarrados aleatoriamente entre árvores com peças salpicadas de sangue tiradas dos errantes, nada é desperdiçado, a ameaça do inverno é uma motivação constante. Lilly vê crianças brincando de pular corda perto de uma carreta, alguns garotos chutam uma bola de futebol. Ela
vê fogo em uma churrasqueira, a névoa de fumaça flutuando acima do teto dos carros estacionados. O ar está perfumado com gordura de bacon e fumaça de nogueira, um cheiro que, em outro contexto, poderia sugerir preguiçosos dias de verão, festas ao ar livre, churrascos no quintal, jogos de futebol americano e reuniões de família.

Uma maré de ódio escuro se eleva em Lilly enquanto ela esquadrinha o alvoroço do pequeno assentamento. Ela vê as crianças brincando… e os pais trabalhando para fazer o lugar dar certo… todos eles são comida de zumbi… e de repente Lilly tem uma pontada de clareza… um choque de realidade.

Ela vê claramente que essas pessoas estão condenadas. Esse grande plano para construir uma cidade de tendas nos campos da Geórgia não vai dar certo.


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Redação
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"We are surrounded by the dead. We're among them and when we finally give up, we become them! Don't you get it? WE ARE THE WALKING DEAD!"

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