ESPAÇO DOS SOBREVIVENTES
O texto a seguir é de autoria do sobrevivente Lelo Serau.
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ESTADO DE DIREITO ZUMBI
Lelo Serau[1]
Robert Kirkman nunca explicou, nem se dispôs a explicar, os motivos do apocalipse zumbi. E nisso fez bem, pois certamente perderia credibilidade ao formular alguma hipótese médico-científica a justificar a surreal epidemia. Mas temos certa tranqüilidade para imaginar e ilustrar como seria a provável resposta das autoridades constituídas ao caos social derivado da expansão zumbi.
Penso ser possível cogitar até mesmo a contenção da ameaça, cenário que ocorre no final do filme de George Romero, nos anos 1980 (A noite dos Mortos-Vivos), e no recente Guerra Mundial Z.
Os sistemas jurídicos normalmente prevêem normas que estabelecem a possibilidade de restrições aos direitos fundamentais dos cidadãos em casos de calamidade pública ou fenômenos naturais excepcionais. São as conhecidas figuras do estado de defesa[2] e do estado de sítio[3].
Dentro da legalidade, os governos constituídos podem impor restrições a direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos. Podem, inclusive, com o intuito de contenção dessas graves crises institucionais, empregar as forças policiais e as Forças Armadas contra seus próprios cidadãos.
Outro aspecto importante, mas fora das normas jurídicas, é aquilo que a Filosofia Política identificou como estado de exceção[4]: estaríamos vivendo sob a ideologia de que há um inimigo interno ou externo, uma ameaça constante, a justificar a vigilância dos cidadãos, assim como a tomada de medidas excepcionais contra os próprios, mesmo em tempos de paz.
Seja pelos modos lícitos ou através dos mecanismos excepcionais, abundam exemplos de severo controle da população: a repressão aos protestos brasileiros em junho do ano passado ou a repressão aos levantes árabes; o Patriot Act nos Estados Unidos, a utilizar a lógica do inimigo interno e da persecução sem limites ao terrorismo; o modelo de rígido controle social dos países comunistas; a repressão aos palestinos ou a perseguição aos movimentos anti-globalização. Por toda parte o Grande Irmão[5], a exercer estreito controle sobre a população.
As medidas de controle social podem ser utilizadas em tempos perigosos, como imaginamos seria a praga zumbi. Possivelmente seriam muito eficazes em termos repressivos.
A eficácia de todas estas providências, é claro, dependeria da intensidade, das causas e velocidade com que se expandisse a catástrofe zumbi. Mas isso Kirkman não nos contou.
[1] Marco Aurélio Serau Jr., um jurista que se pôs, aqui, a falar um pouco sobre zumbis.
[2] A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, assim cuida do estado de defesa:
“Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.
§ 1º – O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:
I – restrições aos direitos de:
a) reunião, ainda que exercida no seio das associações;
b) sigilo de correspondência;
c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica;
II – ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes.”
[3] O estado de sítio também é previsto no Brasil, regido pelos artigos 137 a 139 da Constituição Federal:
“Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de:
I – comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;
II – declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.
Art. 138. O decreto do estado de sítio indicará sua duração, as normas necessárias a sua execução e as garantias constitucionais que ficarão suspensas, e, depois de publicado, o Presidente da República designará o executor das medidas específicas e as áreas abrangidas.
Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas:
I – obrigação de permanência em localidade determinada;
II – detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns;
III – restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei;
IV – suspensão da liberdade de reunião;
V – busca e apreensão em domicílio;
VI – intervenção nas empresas de serviços públicos;
VII – requisição de bens.
[4] Esta é a tese de GIORGIO AGAMBEN, filósofo político italiano, desenvolvida na obra Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2007.
[5] Figura criada pelo romancista GEORGE ORWELL no extraordinário romance 1984, onde se descreve uma sociedade totalitária, cujo governo despótico exerce estreito controle dos cidadãos a partir de ferramentas tecnológicas.