O site oficial de The Walking Dead publicou uma análise do Dr. Ali Mattu sobre o estado psicológico de Lizzie. Confira:
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Scott M Gimple de The Walking Dead está fazendo um incrível trabalho com a Quarta Temporada. A série continua aumentando a aproximação com os quadrinhos de uma forma interessante. Eu estava especialmente interessado no que estava acontecendo com as crianças que vivem naquela prisão e comecei a escrever um artigo chamado Como criar uma criança em um apocalipse zumbi. Depois do episódio The Grove, eu abandonei o artigo completamente e mergulhei na psicologia atrás do que se tornou o evento mais controverso da história da série.
O que aconteceu?
Depois do Governador destruir a prisão, que era o porto seguro de todos, Lizzie estava vagando com a sua irmã mais nova, Mika, Judith, Carol e Tyreese. Nós sabíamos já há algum tempo que Lizzie via os zumbis de uma forma diferente das outras pessoas. Ela dava nomes como se eles fossem pessoas, secretamente os alimentava com ratos, e alegava que entendia seus pensamentos. Também descobrimos que ela matou coelhos, mas não ficamos sabendo com que finalidade. E quando Lizzie e Mika estavam tentando evitar serem vistas pelos mortos-vivos, ela quase sufocou Judith. Não precisa ser um psicólogo para perceber que esses comportamentos são estranhos e preocupantes.
As coisas realmente se desenvolveram com o episódio 14, com Lizzie suplicando para que Tyreese mantivesse o zumbi capturado vivo, e mais tarde quando ela surta quando vê um zumbi sendo finalizado, ao ponto de sua irmã ter que acalmá-la falando “olhe para as flores”. E por fim, a explosão de fúria da garota quando Carol mata o zumbi com o qual ela estava brincando. Por fim Lizzie mata Mika e confessa, dizendo: “Não se preocupe. Ela vai voltar. Eu não feri o cérebro dela”. Ela deixa bem claro que estava prestes a matar Judith também. Depois de uma longa discussão, Carol e Tyreese decidem que não é seguro para eles ficarem perto de Lizzie.
A história de Lizzie é inspirada em um ameaça similar na HQ de The Walking Dead, focada em Ben, que acaba matando seu irmão Billy. Ben nunca brincou com os zumbis ou os alimentou, mas ele foi visto abrindo a barriga de um gato, parecido com Lizzie e seus coelhos.
Lizzie era louca?
Muitas pessoas na internet estão convencidas que Lizzie era “louca”. O site io9 resume as teorias dos fãs aqui:
The Walking Dead poderia ter explicado a loucura de Lizzie mais claramente. Ao tentar transformar Mika num zumbi, ela estaria pensando que estava libertando Mika dos horrores da vida diária? Ou ainda, por Lizzie ter visto tantas mortes, ela decidiu que zumbis ainda são pessoas, como um mecanismo para lidar com a dor? Do jeito que foi apresentado, Lizzie é claramente louca, mas não ficou definido o por quê.
Eu concordo que a série não nos dá nenhuma ideia no que Lizzie estava pensando. Mas o que me incomoda é o uso da palavra “louca”. Este não é um termo usado em saúde mental. É impreciso e estigmatizador. Quando a maioria das pessoas pensa em “louca” eles geralmente querem se referir a problemas com alucinações (ver ou ouvir coisas que não estão ali), ilusões (acreditar em alguma coisa que não tem nenhuma evidência para suportá-la), ou psicopatia (não ter empatia por outras pessoas).
No caso de Lizzie, por ela ter matado coelhos, ter ajudado zumbis, quase ter matado um bebê (duas vezes) e ter matado sua irmã, muitas pessoas pensam que ela era uma psicopata. Se você analisar melhor com base no que nós no que sabemos de garota e na ciência da psicopatia, fica claro que Lizzie estava perturbada com o apocalipse zumbi, mas ela não era uma psicopata.
Psicopatia em crianças
Psicopatia está sempre presente em adultos com transtornos de personalidade antissocial (não pessoas que odeiam situações sociais, mas pessoas que quebram as regras sociais – como matar pessoas). Mas transtornos de personalidade não são diagnosticáveis em crianças – seus cérebros estão em desenvolvimento e suas personalidades ainda estão se formando. Em vez disso, psicologistas procuram por crianças com traços de insensibilidade/não-emocionais. A maioria das crianças agem rapidamente e ficam chateadas facilmente quando as coisas não acontecem como elas queriam. Contudo, as crianças com estes traços não são impulsivas. Elas agem de forma calculada para conseguirem o que querem. Aqui está um exemplo de uma criança com traços de insensibilidade de uma fantástica análise do New York Times sobre psicopatia em crianças:
Um garoto de nove anos de idade chamado Jeffrey Bailey empurrou um bebê dentro de uma funda piscina de um hotel na Flórida. Enquanto o menino sofria e afundava para o fundo da piscina, Bailey sentou-se numa cadeira para assistir. Quando foi depois questionado pela polícia, Bailey explicou que ele estava curioso para ver alguém se afogando. Quando ele foi levado sob custódia, ele parecia não ligar sobre a probabilidade de ir para a cadeia, mas estava feliz em ser o centro das atenções. Nem todas as crianças com traços não-emocionais crescem e se tornam assassinos em série (algumas se tornam neurocientistas), mas eles são os que têm maiores chances de desenvolveres psicopatias.
O que causa a psicopatia? Cientistas têm conectado comportamentos como torturar animais, manipular outros para seu próprio benefício, e matar com baixos níveis de cortisol (um hormônio liberado quando se está estressado) e a baixa atividade da amígdala (área do cérebro responsável por sentir medo e vergonha). Pessoas que têm psicopatia são muito sangue frio – elas não sentem tanto medo e estresse quando as outras pessoas. Quando a maioria das crianças quebra uma regra social, elas se sentem mal pelo o que fizeram. Com o tempo, isso leva a empatia e previne um comportamento violento. Crianças psicopatas não fazem essas conexões. As partes do cérebro que previnem comportamentos violentos e cruéis não se desenvolvem.
Mas Lizzie não se encaixa nos moldes de uma criança com traços de insensibilidade. Ela é, na verdade, muito emocional – nós todos vimos ao menos dois exemplos de vezes nas quais elas entrou em pânico e precisou olhar para as flores para se acalmar. Ela também se arrepende quando ela pensa que desapontou Carol. Uma criança psicopata não teria esses sentimentos. Mais importante, Lizzie sentia muita empatia… pelos zumbis.
Entendendo o comportamento estranho de Lizzie
Então o que há de errado com Lizzie? Para responder essa pergunta, nós teremos que fazer o que psiquiatras chamam de uma análise funcional do comportamento – basicamente tentar entender como suas ações satisfazem suas necessidades.
Vamos analisar o comportamento de Lizzie. Se ela está sozinha com um zumbi, ela não sente medo. As únicas vezes que ela ficou com medo perto de um zumbi foram quando outras pessoas estavam por perto. Nessas situações ela tenta evitar ser descoberta pelos zumbis ou suplica para que não o matem. Se ela consegue evitar que o zumbi morra, ela fica bem. Mas se ele acaba morrendo ela fica aflita. Ela os alimenta com ratos e deixa vários coelhos mortos espalhados pela floresta. Todos esses comportamentos apontam para uma ideia básica – Lizzie se preocupa com os zumbis e faz tudo o que pode para proteger a vida deles.
Nós já sabemos que Lizzie acha que os mortos-vivos são incompreendidos. Mas ela provavelmente também acha que eles são parecidos com humanos. É por isso que ela os protege, ela tem empatia por eles. Ela também pode achar que ninguém morre até que eles sejam mortos em seu “estado desmorto”. É por isso que ela grita “você gostaria que eu te matasse?” para Carol, quando ela esfaqueia um deles. É por isso que ela os alimenta com ratos. Ela se sente mal por eles. É por isso que ela quase sufocou Judith, pois silenciando-a ela estava tentando prevenir os zumbis de se aproximarem e serem mortos pela sua irmã. Ao mesmo tempo, ela acreditava que Judith não estava realmente morrendo por ser sufocada – ela retornaria como um zumbi (que é tão bom quanto ser um humano). Isso tudo faz sentido – se os mortos-vivos fossem iguais aos humanos, é claro.
Uma criança que cresceu num apocalipse zumbi pode facilmente se confundir com a vida, a morte e a ressurreição. O cérebro de uma criança muda muito nos primeiros 13 anos de vida e também muda a forma com que veem a morte. Até os seis anos, as crianças podem pensar que a morte é temporária e reversível, ou que se eles têm pensamentos positivos podem trazer de volta à vida uma pessoa amada. Parece muito com o que aconteceu com Lizzie, certo? É claro que ela tem muito mais que seis anos, mas ela está vivendo nessa distopia há muitos anos. Estresse crônico traumático é muito ruim para o desenvolvimento do cérebro. Emoções fortes (“olhar para as flores”), o estresse de estar constantemente se mudando, a má nutrição e a falta de pais estáveis em sua vida poderia levar a algum tipo de atraso no desenvolvimento de Lizzie.
Lizzie poderia ter sido tratada?
O estresse crônico de Lizzie poderia ter sido reduzido se ela fosse ajudada a se sentir mais calma. Ela também poderia ter aprendido maneiras de se regular emocionalmente e controlar mais seus sentimentos. Então, depois de já estabilizada, sua irmã Mika ou um adulto de confiança, poderia ter ajudado ela a entender melhor a relação entre a morte de um humano e a morte de um zumbi.
Infelizmente, isso não foi possível em The Walking Dead. A 4ª temporada mostrou que não há tempo para descansar naquele mundo – ameaças de zumbis e de humanos não cessam. E falando nisso, O Governador é certamente um psicopata.
Eu assisto a série porque eu amo os personagens e nós vemos uma grande resistência diante da extinção total. Por mais difícil que tenha sido, para mim, assistir The Grove, eu estou feliz que Scott M. Gimple contou aquela história. É um lembrete que um trauma CRÔNICO muda o cérebro e essas mudanças têm um tremendo impacto nos membros mais vulneráveis da nossa sociedade.
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Ali Mattu, PhD. em psicologia Clínica pela Universidade de Columbia em Ansiedade e Distúrbios relacionados e especialista em fobia social, transtorno obsessivo compulsivo (TOC), Tricotilomania (transtorno no qual a pessoa arranca cabelos). Ele trabalhou para lutar contra o estigma das doenças mentais e aumentar o acesso e tratamentos efetivos durante seu tempo na Associação de Psicologia Americana (APA) como diretor, entre múltiplas Sociedades para o Ensinamento de Psicologia como presidente e mais recentemente no comitê executivo da Associação de Psicologia do Estado de Nova York. Dr. Mattu em credita Star Trek o seu propósito de vida e ele escreve sobre a psicologia na ficção científica no “Brain Knows Better” (Cérebro Sabe Mais, em português) com a esperança de que isso ajudará a desenvolver um amor pelo cérebro e pela ciência comportamental. Conecte-se com o Dr. Mattu pelo Twitter e dê uma olhada em seu podcast, “The Super Fantastic Nerd Hour” (A Hora Nerd Super Fantástica, em português).
Esse artigo foi publicado, inicialmente, em “Brain Knows Better” e o Dr. Mattu gentilmente permitiu a publicação no site oficial.
Fonte: The Walking Dead Oficial