Precisamos falar sobre Abraham

Na imagem acima, Abraham no momento derradeiro: cabeça em pé, olho no olho de Negan. Um soldado.

(Aviso: contém spoilers com acontecimentos do primeiro episódio da sétima temporada de “The Walking Dead”. Se você não quiser informações a respeito dele, não leia o texto que vem a seguir.)

Choque.

Essa, certamente, é uma das palavras que definem o estado que muita gente ficou depois do primeiro episódio da sétima temporada de “The Walking Dead”.

Já dava para esperar, claro. O gancho que fica no fim da sexta, com a promessa de Negan matar alguém do grupo de Rick, tem a sua continuação e conclusão. E todo mundo sabia que algo trágico viria. Mas, talvez, não tanto.

A morte de Glenn, para quem acompanha as HQs, era certa. Até para quem não acompanha. Muito se falou a respeito disso no universo que cerca a série, e é normal ver relatos de pessoas que se diziam “preparadas para perder o coreano”.

Mas a de Abraham…

Precisamos falar sobre Abraham.

Abraham surgiu na quarta temporada de “The Walking Dead”. O típico milico americano, orgulhoso do país, um soldado robotizado e programado para servir e cumprir ordens.

O protocolo formal que sempre carregou o definia bem. Abraham era o Rambo de “The Walking Dead”. Em determinados momentos, nem a faixa na cabeça faltou. Mas parecia ser o cara construído para ser frio e não ter sentimentos. A maneira como trata o relacionamento com Rosita, aliás, define bem isso. Principalmente no fim.

Mas, claro, batia um coração dentro do peito do ruivo. E, aos poucos, à medida em que o mundo exterior ficava mais impessoal, ele trilhou caminho inverso. Começou a deixar de lado o perfil 100% carrancudo para chegar ao ponto de sonhar em construir uma vida ao lado de Sasha, com filhos e jantar de domingo no quintal de casa.

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Abraham virou humano.

Muito desse desenvolvimento, claro, passou por uma necessidade comercial. Se as pessoas que assistem à série gostam do cara, os produtores trabalham em cima dele. É normal. Se o sujeito atrai uma multidão, natural que receba mais atenção. Veja o caso de Daryl e Carol. O primeiro, nem existe no gibi. É um personagem exclusivo da TV, e ficou tão gigante que se tornou essencial. Carol tem um apelo tão grande com a audiência que os produtores da série, mais de uma vez, disseram que talvez, um dia, até mesmo Rick seja dispensável em “The Walking Dead”, mas ela, não.

Com Abraham foi assim.

Mais uma vez, quem lê as HQs sabe que ele já se foi há muito tempo. E de uma maneira extremamente fútil. Você se lembra da morte de Denise, que estava andando, dando sermão e, do nada, levou uma flechada no rosto? Pois é, nas páginas das histórias em quadrinhos, isso aconteceu com Abraham. E foi menos “nobre”, ainda, porque nem dando o tal sermão ele estava. Caminhava, tomou uma flechada, bau-bau. Foi-se.

Mais de uma vez, igualmente, Robert Kirkman disse que se arrependeu de matar o cara daquela maneira. “Ele era muito maior do que aquilo”, disse. E era. Abraham cresceu paralelamente à história.

O gibi e a série da TV, sabe-se, não necessariamente caminham lado a lado. Não apenas em “The Walking Dead”, aliás. É muito mais frequente ver as duas versões com diferenças, por mais que sigam sempre um fio condutor. Certa vez, Stephen King publicou um comunicado no site oficial dele pedindo desculpas aos fãs e leitores pela maneira como adaptaram para a tela “Under the Dome”, um de seus best sellers mais recentes. O que acontecia no seriado era tão diferente daquilo que ele escreveu no livro que o cara se viu obrigado a esclarecer isso.

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Algumas vezes, os produtores de vídeo mudam a coisa toda por pura vaidade. A necessidade de se dar o toque dele à coisa, a versão dele. Às vezes, mudam por necessidade, por uma quebra de contrato de um ator, mudança de rumos profissionais. Mas, às vezes, mudam porque as pessoas, direta ou indiretamente, pedem. O tal caso de um personagem crescer tanto, se desenvolver tão bem, cativar demais as pessoas a ponto de ser essencial para a trama. Mais uma vez, Daryl. O rebelde não tem uma história escrita. O futuro dele está completamente aberto, ninguém tem a mínima ideia do que pode acontecer. Daryl pode até morrer no próximo episódio, mas será que isso vai acontecer? Pode ser que sim, mas, até aqui, tem sido um grande caça-níqueis que a AMC gosta de cultivar.

Abraham não tem tanto apelo, mas mereceu a sobrevida que teve. Mais do que isso, mereceu a morte honrada que teve. Em momento algum ele baixou a cabeça para Negan. Pelo contrário, sempre manteve o queixo erguido e olhar no fundo dos olhos do vilão, até mesmo no momento do golpe fatal. A frase derradeira (“Suck my nuts”, que foi traduzida para “Chupa meu p…”) é uma prova disso. Não à toa, Negan diz que ele estava recebendo aquela punição “como um campeão” (“Like a champ”, no áudio original).

E o sinal para Sasha… Não apenas para Sasha, aliás. Para toda a audiência. Perceba que, quando ele mostra os dois dedos, a câmera não está nela. A visão é a do telespectador. Abraham se despediu com nobreza, coragem e pureza. Aquele armário que suportou o castigo de Lucille com os ombros armados estava, ali, se despedindo. Em paz.

Perder Glenn foi terrível para muita gente. Qualquer um dos membros originais de Atlanta carrega esse tipo de comoção. No caso dele, isso estava multiplicado pelo histórico, pelo carisma, pelo relacionamento com Maggie e pelo bebê que ela carrega na barriga. Mas as pessoas estavam preparadas para perder Glenn.

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Com Abraham, não. Mais e mais, o ruivo ia conquistando um território não antes explorado. Mais e mais, ia se transformando e transformando as pessoas. Mais e mais, ia abandonando o lado robotizado e mostrando o ser humano que é. Abraham se foi. Como um soldado, mas, certamente, deixando um legado para “The Walking Dead”.


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Plinio Rocha
Plinio Rocha
Jornalista, 38 anos, paulistano. Quando os zumbis tomarem conta, vai preferir o arco e flecha a um revólver. Acha que Rick e Shane poderiam ter se sentado e tentado resolver o triângulo amoroso. Ou não.

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